terça-feira, 26 de abril de 2016

MANUCURE — de MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Todo me incluo em mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Boçal, quadrangular e livre-pensadora…
Fora: dia de maio em luz
E sol – dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Não podem tolerar – e apenas forçados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas…

E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por mim…
Mil cores no ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuemente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto fui…
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos refletiram…
Leve inflexão a sinusar…
Fino arrepio cristalizado…
Inatingível deslocamento…
Veloz faúlha atmosférica…
E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras interseções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.
É lá, no grande espelho de fantasmas Que ondula e se entregolfa todo o meu passado, Se desmorona o meu presente, E o meu futuro é já poeira…
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godés de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao infinito!…
Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora…
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a ouro!
– Que rendas outros bailados!
Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias…
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle…
Tudo inserto em ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'alma a divagar!…
Ó beleza futurista das mercadorias!
Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em ti!
E os pregos, as cordas, os aros… –
Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
Gritos de atual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:
FRÁGIL! FRÁGIL!

843 – AG LISBON

492 – WR MADRID
Ávido, em sucessão da nova beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco – célere,
Imponderável, esbelto, leviano…
– Olha as mesas… Eia! Eia!
Lá vão todas no ar às cabriolas,
Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados…
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o café…
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda…
Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos intersecionistas, Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências…
Quanto à minha chávena banal de porcelana?
Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a ouro emite…
É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!…
Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, azes – na poeira multicolor –.

Poemas Dispersos, Lisboa – Maio de 1915.

[Publicado no número 2 da revista Orpheu – 1915]

[Ortografia atualizada]

Nos 100 anos da sua morte.

+++

Sem comentários:

Enviar um comentário