E quem é que sabe o que
nos vai acontecer pela vida fora? P. 29
Mais uma vez me foi lançado o desafio de apresentar uma obra
para a comunidade de leitores, e é com todo o gosto que aqui estou para tecer a
minha leitura, ao mesmo tempo que aguardo com surpresa os vossos contributos
para a interpretação deste texto literário.
Confesso de antemão que tenho este livro como um bom companheiro.
É por certo um dos livros que revisito, e continuo a entrar nesta viagem, - a
convite do autor, com espanto e alimentando-me de poesia na aflição de Manuel.
Por grande coincidência ou não também BB replica esta
liberdade de entender, amar, sentir prazer ou “desajeitar-se” numa leitura.
Aqui neste espaço de partilha, seguramente não existe
obrigatoriedade de leitura, ou de agradar a todos, no entanto quem lê, escolhe,
seleciona, transforma, forma-se, forma o seu gosto leitor. Habitua-se à
necessidade de ler.
BB no prefácio à sétima edição afirma: “Um livro vale o que
vale, e nenhum prefácio altera para o mal ou para o bem, o que lá está dentro.
Convido-o, pois a viajar comigo pelas ruas de uma infância aflita”.
Este prefácio ultrapassa e tradição frequente, de comentários
preparativos da leitura que ajudam a determinar à partida, o seu leitor ideal,
encontrando neste pré texto uma análise sólida, consciente acerca da literatura,
da escrita, uma reflexão pessoal, marcadamente política e opinativa sobre o
poder e a cultura.
As ruas que se nos oferecem como destino localizam-se em
Lisboa na Ajuda, bairro que viu nascer Manuel - e onde viveu até à morte da mãe
cancerosa. Já adolescente e, num segundo momento - estende-se por vários
bairros onde se multiplicam as experiências de aprendizagem, momentos de
iniciação, e, de crescimento até uma idade adulta.
Percorremos com ele: A calçada da Ajuda, o seu tejo, o
quartel da guarda republicana, o cemitério, a taberna, não chegámos ao jardim
colonial, mas as promessas foram regulares.
Num segundo tempo calcorreamos: as ruinas do carmo, o castelo
de S. Jorge, O rio tejo visto agora de alfama, a baixa, o cais do Sodré e seus
idílios, ainda os Bairros de Arroios, Lumiar, Graça…. E o telhado de casa.
É no fragmento do “pica” do elevador que ficamos a saber que
Manuel já não é criança!
Situamo-nos então em Lisboa cidade adormecida por alturas da
II guerra mundial sabendo que “Antes da guerra o tempo era favorável à
afabilidade”; “havia intimidade”.
A neutralidade de Portugal salazarista na Guerra é aparente e
a tragédia humana é acompanhada por notícias de jornais e relatos na rádio.
Como sabemos todos, foram enviados jornalistas à BBC para darem conta, de modo
filtrado, como era necessário ao regime, do que se passava na europa. Uma
guerra lá fora mas que divide famílias cá dentro e levanta questões a todos:
Pai - Rebentou a guerra, P. 18; * paginação das edições ASA
Pai - É a guerra! P. 19.
Avô – o mundo agora vai piorar P. 21
Pai – Está tudo perdido para nós P. 21.
Manuel pergunta ao primo – Vão matar? P. 36
Manuel – Pai, como é que vamos de guerra? P. 40
Manuel - O pai ultimamente tem estudado a guerra? P. 62
Manuel - E quem é que sabe o que nos vai acontecer pela vida
fora? P. 29
Uma dessas famílias é a de Manuel, nome adotado pela
personagem e roubada ao seu primo Manel, que sendo mudo produz discursos,
explica, imagina, alivia dores. É esta personagem que o orienta pelas ruas do
bairro que o viu nascer, onde se instalou a família alargada, os pais (que não
se amam), os avós maternos (separados em afetos), o tio que não suporta o pai
nem o cunhado e a tia (figura de carater desanimado).
A neutralidade de que se fala tanto não admite que a Guerra
tenha dividido famílias portuguesas em anglófilos e germanófilos, mas foi o que
aconteceu e a História nem sempre o diz. Portugal pactuou com uma frágil
situação financeira e equilibrou-se através da exportação de volfrâmio para a
arte da guerra; também recebeu refugiados… muitas crianças (entregues a
famílias de acolhimento).
Com a Guerra começa a guerra em casa; Vejamos: Nesta incursão
o tio e a mãe defendem um lado (ordem, disciplina); o pai e o avô “Aliados” – defendem
militantemente no outro espectro político. A guerra acaba por durar toda a
narrativa: Assim como a outra guerra, a da sobrevivência de Manuel, que parece
começar quando o avô “um cão velho entre flores”, morre. Esse avô que mais não
era do que um dos “cães velhos dos campos, que quando estão à morte, procuram
as terras onde há flores para morrerem mais à vontade.”
Esta morte acaba por ser o início da procura de Manuel pelas suas
flores; indesejado pela família da mãe, que vê nele um estorvo, e por vezes uma
memória penosa para o pai, ele vai passeando por Lisboa, na companhia do seu
primo Mudo; Também pela mão da avó e do pai, ou ainda, mais tarde de João e do
Mágico, habitantes e amigos do seu pequeno mundo que se vai expandindo e sem
retorno, tornando-o precocemente adulto.
Da leitura desta obra retiro momentos que me tocaram
particularmente por tão bem expressos nas palavras medidas e imagens poéticas
visionadas: a descrição pelo avô da figura do genro: “O teu pai é um artista; o
teu pai é um bom homem, chefe de uma família empobrecida e gosta de sonhar”; a
ida à embaixada por parte dos dois para manterem na lapela o emblema dos
aliados ingleses revelando uma “cumplicidade sem palavras”; a questão do que é
ser homem; a questão de onde reside a dignidade e da morte que é vista sem
tabus, tal como a doença e a pobreza. “Agora sabia que eramos muito pobres”.
Para a estrutura da narrativa socorri-me de Maria Alzira
Seixo:
1 - A viagem prometida por BB é uma viagem narrada essencialmente na
primeira pessoa em tons intimistas e com uma clara tomada de posição ao estilo
do escritor, com ocasionais fugas para a terceira pessoa, que acontece mais
para o final da obra.
2 - Não é uma viagem alegre, é, isso sim, toda ela feita de
um “vazio” nas personagens - parecem por vezes figuras que se movem ao sabor do
vento - O que não implica necessariamente que sejam vazias
3- Outra característica é a ausência de grandes descrições.
Tudo o que é dado é-o em tons impressionistas, sem contornos firmes, uma mancha
que nos dá a entender o essencial, deixando o restante para o leitor imaginar.
Retira-se deste modo, algum peso à obra, mas também uma certa sensação de
profundidade. A organização em fragmentos ajuda à estratégia narrativa.
4 - Ao nível da escrita verifica-se um notável domínio de
pontuação, - regula o ritmo da narrativa fazendo o leitor acelerar ao ponto de
perder o folego, alternando com outra postura a de forçar o leitor a pausas
para meditar no que lê.
Eu e a obra
Eu nascida em Lisboa em 1967 – longe portanto deste tempo da
narrativa, ainda reconheço quadros da minha infância e de jeitos de ser
gente em Lisboa: a ida de elétrico para a escola preparatória Manuel da
Maia (com 10 anos) sendo o bilhete comprado à unidade e picado pelo “pica”.
Recordo as figuras do amolador de facas e de conserto de
guarda chuvas (Estes ainda não extintos!), o padeiro à porta às 6 horas da
manhã – transportado na sua bicicleta; as visitas de estudo já no Liceu Passos
Manuel, ao Jardim botânico de Belém (reestruturado em plena Exposição do Mundo
Português em 1940), e ao Palácio Nacional da Ajuda (erigido em final do século
XVIII).
Ainda convivi com as lavadeiras de roupa com trouxas à
cabeça, as costureiras que iam a casa recuperar e transformar as roupas de uns
para outros, a ida à modista, as mercearias de bairro, a ida ao mercado da
ribeira, os passeios a ver os Robertos no Parque Eduardo VII onde vendedoras de
balões faziam pela sobrevivência; Também vendiam nougats. E dos bons! Os
passeios à Alameda D. Afonso Henriques (1º rei de Portugal; conquistador de
Lisboa aos mouros), Alameda essa, ex-libris do Estado Novo onde certo dia tirei
uma foto à la minuta.
Mas BB trás para a sua narrativa muitas outras figuras:
soldados, tropa, fiscal mor, chineses das gravatas, jornalistas e jornaleiros,
ciganos, prostitutas, saltimbancos e vendedores, polícia, mestre-escola.
Estes fragmentos retenho-os em memória - mas foram abertos ao
ler esta história e renasceram de novo para esta apresentação, memória essa e cito
BB,” memória essa é que é efetivamente a ultima a morrer, e não a esperança”.
Para concluir e porque desde há muito que as palavras estão
em festa, em liberdade, nesta comunidade de leitores de que fazemos parte,
termino com este trecho que me emocionou por tão lúcido, onde as palavras dizem
muito mais nos espaços de silêncio.
“Evocaria os anos de guerra e o que me sugeria: restrições,
senhas de racionamento, bichas na madrugada para o pão e o carvão, troca de
géneros, mercado negro, janelas com fitas gomadas, palavras misteriosas e
belas: os Balcãs, os Sudetas, Varsóvia, Darnelos, mar de Mármara, Apeninos” p.
118
Com palavras …procurei responder à pergunta de uma
personagem.
E quem é que sabe o que
nos vai acontecer pela vida fora? P. 29
Sabe a literatura!
Obrigada a todos.
Cristina Costa