quarta-feira, 7 de maio de 2014

Texto do escritor Germano Almeida

Caros amigos:
   Estou feliz por saber que no vosso ciclo de leituras incluíram e vão proceder à análise do meu livro “O testamento do sr Napumoceno da Silva Araújo”. É evidente que na qualidade de autor isso só poderia dar-me prazer e agradeço-vos por tal facto.
 Creio poder ajudar-vos um pouco na compreensão do livro se vos contar, ainda que sumariamente, a história da ilha onde a ação decorre – S. Vicente. Bem entendido que não pretendo de forma alguma influenciar a vossa leitura num ou noutro sentido, apenas pretendo dar-vos um pouco a conhecer o ambiente em que decorre o texto, o que pode até facilitar a compreensão do personagem. 
 S.Vicente foi a última das ilhas do arquipélago a ser povoada. Isso aconteceu porque a natureza a dotou de uma baía sobre todas superior, mas principalmente porque os ingleses, precisando impulsionar a neocolonização dos países do atlântico sul para ali colocarem as excedentárias produções das suas fábricas, precisaram de um lugar intermédio para abastecimento dos seus navios.
  De modo que no de 1838 a companhia inglesa East Índia estabeleceu em S.Vicente o primeiro depósito de carvão. Ao mesmo tempo, em Portugal o marquês de Sá da Bandeira decretava “que se funde na ilha de S.Vicente uma povoação com o nome de Mindelo, em memória do desembarque do exército expedicionário de D. Pedro IV nas praias do Mindello em Portugal”.
  Foi assim que se deu início aos considerados tempos áureos de Mindelo, e durante cerca de 50 anos assistiu-se a um crescimento e desenvolvimento de uma cidade nunca antes visto em Cabo Verde, quer a nível comercial, quer a nivel do ensino e urbano, para além de outros progressos iam também acontecendo: em Março de 1874 foi amarrado na praia da Matiota o primeiro-cabo submarino ligando S. Vicente à Europa e América e pouco depois se instalava no Porto Grande os depósitos de carvão da Cory Brothers & Cª, pelo que Mindelo passou a ser considerado o maior porto carvoeiro no médio Atlântico.
 Como curiosidade, pode-se dizer que nessa época Mindelo já era uma vila asseadíssima, alumiada por 100 candieiros de petróleo, e dotada não só de belos edifícios públicos, (igreja, palacete do governo, paços do concelho, quartel, alfândega com seu cais, ponte de madeira e caminho de ferro, para além do mercado em construção) mas também de algumas casas particulares “onde não falta o conforto, podendo chamar-se o segundo foco da população e civilização da província”. O Conselho da Província tinha estabelecido a obrigatoriedade de os habitantes do Mindelo plantarem uma árvore no seu próprio quintal, por cada três metros quadrados de terreno ocupado.
   Mas não só em infraestruturas crescia a cidade. A instrução era também objecto de cuidados e funcionavam escolas de instrução primária para o sexo masculino e outras para o sexo feminino, para além de ensino particular de francês, inglês e escrituração comercial, tendo mesmo os alunos da escola municipal formado uma “filarmónica de música marcial que, se não é boa, atenta a idade dos executantes, pode considerar-se bastante sofrível”. A 10 de Junho de 1880, dia do tricentário da morte do épico Camões, inaugurou-se a escola do seu nome, destinada ao sexo feminino, e também a biblioteca pública, ainda que a mesma só viesse a realmente ser posta à disposição do público a partir de 1 de Outubro de 1887, porém já com mais de mil volumes, todos adquiridos através de dádivas dos munícipes. Nessa data de 1880 foi também lançada a primeira pedra para a construção do hospital da ilha.
De modo que em 1899 a Revista de Cabo Verde insinua a criação de um liceu em S.Vicente, e em 1900 os habitantes da              ilha dirigem um memorial ao ministro da Marinha e do Ultramar mostrando-lhe a necessidade de estabelecer na ilha um escola de instrução secundária e uma outra para o estudo das línguas estrangeiras.
  Foi a partir dos finais dos anos oitenta do século XIX  que Porto Grande começou a ser confrontado com o problema da falta de procura externa e consequente desemprego que conduziu a toda a casta de desordem social ao mais desenfreado alcoolismo. E a situação da população foi ficando cada vez pior, a ponto de uma comissão de operários da cidade ter tido a iniciativa de apresentar à Câmara uma petição, assinada por numerosas pessoas, na qual solicitava ao Governador que proibisse a entrada de toda e qualquer aguardente em S.Vicente, quer provincial quer de origem estranha, “cujo consumo representa para os pobres nada menos que um crime de lesa-humanidade”.
  S. Vicente devia ter sido a terra de promissão do caboverdiano e acabou transformado num pequeno inferno de salve-se quem puder, um povo que aprendeu a sobreviver de expedientes diversos, quer seja do jogo, quer seja do empréstimo, quer seja das pequenas trapaças que lhe vão garantindo o dia-a-dia. E talvez por influência de um porto que em cada dia o metia em contacto com gentes das mais diferentes latitudes, é igualmente um povo que encara as mudanças, seja qual for a sua natureza, com um optimismo exagerado. O Sr Napumoceno é um produto desse meio que o viu crescer e amadurecer como homem.
 Espero, pois, que esses dados vos ajudem a fazer uma correcta apreciação do livro e
Mantenhas, GA



Sem comentários:

Enviar um comentário