Caros amigos:
Estou feliz por saber que no vosso ciclo de
leituras incluíram e vão proceder à análise do meu livro “O testamento do sr
Napumoceno da Silva Araújo”. É evidente que na qualidade de autor isso só
poderia dar-me prazer e agradeço-vos por tal facto.
Creio poder ajudar-vos um pouco na compreensão
do livro se vos contar, ainda que sumariamente, a história da ilha onde a ação
decorre – S. Vicente. Bem entendido que não pretendo de forma alguma
influenciar a vossa leitura num ou noutro sentido, apenas pretendo dar-vos um
pouco a conhecer o ambiente em que decorre o texto, o que pode até facilitar a
compreensão do personagem.
S.Vicente foi a última das ilhas do
arquipélago a ser povoada. Isso aconteceu porque a natureza a dotou de uma baía
sobre todas superior, mas principalmente porque os ingleses, precisando
impulsionar a neocolonização dos países do atlântico sul para ali colocarem as
excedentárias produções das suas fábricas, precisaram de um lugar intermédio
para abastecimento dos seus navios.
De modo que no de 1838 a companhia inglesa
East Índia estabeleceu em S.Vicente o primeiro depósito de carvão. Ao mesmo
tempo, em Portugal o marquês de Sá da Bandeira decretava “que se funde na ilha
de S.Vicente uma povoação com o nome de Mindelo, em memória do desembarque do
exército expedicionário de D. Pedro IV nas praias do Mindello em Portugal”.
Foi assim que se deu início aos considerados
tempos áureos de Mindelo, e durante cerca de 50 anos assistiu-se a um
crescimento e desenvolvimento de uma cidade nunca antes visto em Cabo Verde,
quer a nível comercial, quer a nivel do ensino e urbano, para além de outros
progressos iam também acontecendo: em Março de 1874 foi amarrado na praia da
Matiota o primeiro-cabo submarino ligando S. Vicente à Europa e América e pouco
depois se instalava no Porto Grande os depósitos de carvão da Cory Brothers
& Cª, pelo que Mindelo passou a ser considerado o maior porto carvoeiro no
médio Atlântico.
Como curiosidade, pode-se dizer que nessa
época Mindelo já era uma vila asseadíssima, alumiada por 100 candieiros de
petróleo, e dotada não só de belos edifícios públicos, (igreja, palacete do
governo, paços do concelho, quartel, alfândega com seu cais, ponte de madeira e
caminho de ferro, para além do mercado em construção) mas
também de algumas casas particulares “onde não falta o conforto, podendo
chamar-se o segundo foco da população e civilização da província”. O Conselho
da Província tinha estabelecido a obrigatoriedade de os habitantes do Mindelo
plantarem uma árvore no seu próprio quintal, por cada três metros quadrados de
terreno ocupado.
Mas não só em infraestruturas crescia a
cidade. A instrução era também objecto de cuidados e funcionavam escolas de
instrução primária para o sexo masculino e outras para o sexo feminino, para
além de ensino particular de francês, inglês e escrituração comercial, tendo
mesmo os alunos da escola municipal formado uma “filarmónica de música marcial
que, se não é boa, atenta a idade dos executantes, pode considerar-se bastante
sofrível”. A 10 de Junho de 1880, dia do tricentário da morte do épico Camões, inaugurou-se
a escola do seu nome, destinada ao sexo feminino, e também a biblioteca
pública, ainda que a mesma só viesse a realmente ser posta à disposição do
público a partir de 1 de Outubro de 1887, porém já com mais de mil volumes,
todos adquiridos através de dádivas dos munícipes. Nessa data de 1880 foi
também lançada a primeira pedra para a construção do hospital da ilha.
De modo que em 1899 a
Revista de Cabo Verde insinua a criação de um liceu em S.Vicente, e em 1900 os
habitantes da ilha dirigem um
memorial ao ministro da Marinha e do Ultramar mostrando-lhe a necessidade de
estabelecer na ilha um escola de instrução secundária e uma outra para o estudo
das línguas estrangeiras.
Foi a partir dos finais dos anos oitenta do
século XIX que Porto Grande começou a
ser confrontado com o problema da falta de procura externa e consequente
desemprego que conduziu a toda a casta de desordem social ao mais desenfreado
alcoolismo. E a situação da população foi ficando cada vez pior, a ponto de uma
comissão de operários da cidade ter tido a iniciativa de apresentar à Câmara
uma petição, assinada por numerosas pessoas, na qual solicitava ao Governador
que proibisse a entrada de toda e qualquer aguardente em S.Vicente, quer
provincial quer de origem estranha, “cujo consumo representa para os pobres
nada menos que um crime de lesa-humanidade”.
S. Vicente devia ter sido a terra de
promissão do caboverdiano e acabou transformado num pequeno inferno de salve-se
quem puder, um povo que aprendeu a sobreviver de expedientes diversos, quer
seja do jogo, quer seja do empréstimo, quer seja das pequenas trapaças que lhe
vão garantindo o dia-a-dia. E talvez por influência de um porto que em cada dia
o metia em contacto com gentes das mais diferentes latitudes, é igualmente um
povo que encara as mudanças, seja qual for a sua natureza, com um optimismo
exagerado. O Sr Napumoceno é um produto desse meio que o viu crescer e
amadurecer como homem.
Espero, pois, que esses dados vos ajudem a
fazer uma correcta apreciação do livro e
Mantenhas, GA
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