domingo, 24 de fevereiro de 2019

Breve Dissertação sobre o Palavrão



Caros circunjacentes:
A minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos:
O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca afora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do asfalto faz colidir os interesses particulares. Então, nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as características ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua família. São expressões belicosas cuja significação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo, «Rastilho curto!», o que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele.
No entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitupério não precisa de coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena. Para tanto, basta a entoação colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista em estupor, como touro lidado: «Ó meu caro amigo: Vodafone!»
A forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado local, diversos dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se adequam melhor às características do enxovalhado. As notícias da política internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções ortográficas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: «Vai pà Bósnia, sua Herzegovina!» Se fosse agora, talvez dissesse «Vai Bachar al-Assad com Brexit, sua Guaidó!», o que me parece de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.
Outro significado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo, pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um palavrinho, como pirilau de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela aspiração de cinzas vulcânicas”.
O mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das crueldades — é a “doença psicológica que se caracteriza pelo medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação da sua própria enfermidade!
Estes vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérfido subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica, também posso autoqualificar-me como Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso por abominar redundâncias.
A terceira aceção de “palavrão”

domingo, 27 de janeiro de 2019

A ponte



Viajar para Saturno não fazia parte das aspirações de Oleg, em criança. As leituras de juventude — muita ficção científica, muita divulgação científica — levaram-no, no entanto, para caminhos insuspeitos, mas empolgantes. Aos trinta e dois anos via-se a caminho de Encélado, uma lua de Saturno com aparentes boas possibilidades de desenvolver vida: tem água líquida, atividade hidrotermal e uma composição gasosa com algumas semelhanças com a da Terra. Tais condições, talvez amigáveis para humanos, desencadearam mais uma corrida espacial entre as nações do planeta azul. Haverá um momento em que pequenas colónias de homens terão necessariamente de procurar alternativas de espaço e de recursos naturais fora da superlotada e envenenada Terra.
Oleg integra a minúscula equipagem da Moct, a nave que já navega há quatro anos e ainda precisa de mais dezasseis para chegar a Saturno. Os três membros viajam em regime de oito meses de semi-hibernação induzida, por quatro meses de vigília/sono. O tempo custa a passar. Ainda falta quase um mês para Oleg voltar a ser submetido à fase letárgica. O isolamento é penoso e pérfido. Trocar palavras com a base terrestre é um exercício kafkiano, devido ao desfasamento temporal provocado pela distância. Uma palavra que ele lançasse agora para a Terra demoraria mais de três minutos a chegar lá; se devolvida logo, a resposta chegaria a Oleg mais de seis minutos depois. Não dava para conversar; só parodiar um patético diálogo de afásicos.
Oleg não estava tão isolado assim, tinha consciência. A enorme equipa que programara a missão a Encélado previra as intermináveis horas de solidão, estudara os gostos e a personalidade de cada cosmonauta. A Oleg forneceu cinquenta “teras” de filmes e livros, distribuídos por vários unidades de armazenamento.
No final da adolescência, Oleg continuava muito reservado. Era frequentador da biblioteca da sua cidade natal. Gostava de se internar no universo fantástico das secções; como descobridor de mundos, costumava aterrar numa galeria, explorar o continente de uma estante, deambular pelos vales surpreendentes das prateleiras, deslumbrar-se com as residências dos habitantes, entrar nas páginas de uma e tomar contacto com os inesperados moradores, às vezes, seres bizarros e inquietantes; outras, criaturas simpáticas e calorosas. À despedida, um conforto espiritual acompanhava-o, animando a sua condição de homem em busca de enriquecimento íntimo.
Da adolescência guardou aquele gosto pelo inesperado: entusiasmava-se com o que a sorte lhe atribuiria, em pesquisas aleatórias de leitura. Instalou-se no conforto de uma ténue gravidade artificial da zona de lazer, posicionou o visor a uma distância cómoda e lançou a pesquisa. A máquina apresentou-lhe “O jovem pastor e a fadazinha”, um conto valáquio de Gorki. À memória acorreu a imagem de um prado de extensão inimaginável. E do deslumbramento juvenil do pastorzinho aconchegado entre céu e planura.
Lembrava-se de todos os grandes clássicos: da monumentalidade de Tolstoi, da sátira social de Gogol, dos contos suaves e realistas de Chécov; este conto tinha estado encoberto, há tanto tempo que não o lia... Dentro em pouco, estava embrenhado nas peripécias ingénuas e carinhosas do pastor e da pequena fada nas margens do Danúbio:

«O pastor sentou-se à sombra de uma árvore solitária que, amante da liberdade, se afastara da floresta para crescer em plena estepe; erguia-se orgulhosa e altivamente, balouçando suavemente os ramos sob a carícia do vento que soprava do mar.
Era no mês de maio, um mês encantador, um mês alegre. A folhagem nova que o mês tinha feito nascer,

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

"O Império dos pardais" leva-nos ao século XVI


Livro:
O Império dos pardais de João Paulo Oliveira e Costa
10 janeiro
Comunidade de Leitores

O Museu Municipal de Loures – Quinta do Conventinho, em Loures, recebe, a 10 de janeiro, uma sessão da Comunidade de Leitores, onde se vai refletir sobre o livro O Império dos Pardais.
Da autoria de João Paulo Oliveira e Costa, O Império dos Pardais foi a obra de estreia deste autor. Centrando-se na afirmação do império colonial português, no início do século XVI, O Império dos Pardais é um romance histórico que decorre durante o reinado de D. Manuel I.





domingo, 30 de dezembro de 2018

Verosimilhança e verdade



Chama-se verosimilhança ao atributo daquilo que parece intuitivamente verdadeiro. "Vero" significa verdadeiro; "simil", semelhante; ou seja, o que é verosímil é semelhante ao que é verdadeiro. No caso da obra literária, verosimilhança quer dizer semelhante à realidade.
No entanto, muitas obras de ficção apresentam realidades fantásticas, irrealistas, afastadas da realidade conhecida e, ainda assim, não suscitam rejeição, nem sentimentos de inverosimilhança. Porque o referente do leitor deixou de ser a realidade que conhece do dia-a-dia e passou a ser a realidade construída pela narrativa apresentada.
Então, verosimilhança, em sentido mais abrangente, não é a semelhança dos elementos da obra com o mundo real, mas a credibilidade que esses elementos suscitam em relação ao mundo de ficção apresentado.
Cada obra de ficção possui uma lógica interna, que se torna o referente do leitor. Harry Potter pode perfeitamente sobrevoar Londres numa vassoura voadora; Hercule Poirot, de modo nenhum.

Para alguns autores, o verosímil é ainda mais exigente do que o verdadeiro, já que a verdade, às vezes, não é verosímil.

domingo, 23 de dezembro de 2018

Prelúdio de Natal

Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas
Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas
a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas
A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas

[David Mourão-Ferreira]

sábado, 22 de dezembro de 2018

BOAS FESTAS!




As mulheres/trabalhadoras/leitoras desejam aos  leitores da Comunidade de Leitores das Bibliotecas Municipais de Loures um Natal feliz e um Ano Novo com paz, livros e leituras.

Deixamos um  presente, um poema do poeta José Carlos Ary dos Santos, com o título Quando um homem quiser.

Tu que dormes à noite na calçada do relento 
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento 
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento 
és meu irmão, amigo, és meu irmão 

E tu que dormes só o pesadelo do ciúme 
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume 
e sofres o Natal da solidão sem um queixume 
és meu irmão, amigo, és meu irmão 

Natal é em Dezembro 
mas em Maio pode ser 
Natal é em Setembro 
é quando um homem quiser 
Natal é quando nasce 
uma vida a amanhecer 
Natal é sempre o fruto 
que há no ventre da mulher 

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar 
tu que inventas bonecas e comboios de luar 
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar 
és meu irmão, amigo, és meu irmão 

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei 
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei 
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei 
és meu irmão, amigo, és meu irmão 

Ary dos Santos, in 'As Palavras das Cantigas' 

BOAS FESTAS!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

"O Império dos Pardais" no Museu Municipal de Loures


A 4ª sessão da Comunidade de Leitores das Bibliotecas Municipais de Loures  realiza-se no Museu Municipal de Loures com a presença do autor João Paulo Oliveira e Costa. 

João Paulo Oliveira e Costa, nascido em 1962, é doutor em História e Professor Catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É Diretor do Centro de História de Além-Mar (CHAM) e membro da Direção do Centro de Estudos de Povos e Culturas de Expressão Portuguesa da Universidade Católica Portuguesa. Foi um dos coordenadores científicos das Biografias dos Reis de Portugal e autor de D. Manuel I, publicado nesta coleção. Iniciou-se na escrita de ficção com o romance O Império dos Pardais (2008), a que se seguiu O Fio do Tempo (2011).
SINOPSE
Um romance histórico que tem como pano de fundo a afirmação do Império Português, o império dos pardais, durante o reinado de D. Manuel I e se centra em torno de cinco personagens principais que se movem dentro da lógica do mundo da espionagem. A personagem central é uma espia excecional que pensa abandonar uma vida dedicada à violência e à satisfação de instintos primários, em que fora forçada a entrar, para recuperar uma vida social normal ao lado de um artista talentoso, apaixonado e ingénuo. A sua luta interior (contra hábitos sedimentados por quinze anos de isolamento, de rancor, de secretismo e de memórias perturbadoras) e o seu esforço para se libertar dos seus antigos mandantes percorrem toda a narrativa. A vida desta mulher cruza-se com a de dois supostos responsáveis pelos serviços secretos de D. Manuel I e amigos pessoais do rei. Ao acompanhar os encontros e desencontros, o leitor vive as cores, os aromas e os quotidianos de um tempo extraordinário em várias cidades e portos por onde vão passando e vivendo as personagens deste romance, que homenageia um povo e um rei.