quarta-feira, 3 de maio de 2017

Comunidade de Leitores integrada na comemorações do 25 de Abril no concelho de Loures

A noite estava escura. O autocarro  parado à porta da Biblioteca Municipal José Saramago, em Loures, aguardava a hora da partida. Primeiro chegou Ramos, apressado,  tinha de passar alguns avantes!  pelos camaradas e não ser visto. Conseguiu passar alguns. Depois apareceram Vaz e Rosa e logo de seguida chegou Paulo e Maria. Partimos em direção a Bucelas. Pela estrada fora conversámos sobre a nossa vida na clandestinidade. Uma vida difícil para tantos homens e mulheres que lutavam por uma vida mais justa. Estávamos nos anos 50, do século passado, num país que vivia oprimido por um regime opressor.

Chegámos a Bucelas, ao Museu do Vinho e da Vinha e aí, deu-se o encontro de pessoas que gostam de ler e de partilhar as suas leituras em liberdade, claro.

Falou-se do autor, Manuel Tiago/Álvaro Cunhal. Personalidade conhecida de todos, como militante e dirigente do Partido Comunista Português. Foi Secretário-Geral do PCP durante muitos anos, de 1961 a  1992.

Filiou-se no Partido aos 17 anos. É detido pela primeira vez aos 23 anos.  Esteve preso 11 anos e foi mantido incomunicável e em isolamento durante oito anos. Em janeiro de 1960 foge do Forte de Peniche, onde se encontrava preso. Após esta fuga, fica dois anos na clandestinidade e depois vai para o exílio onde permanecerá até 1974. Regressa a Portugal a 30 de abril desse ano.

Álvaro Cunhal foi também um artista raro, com imenso talento para as artes. Expressou-se na literatura e nas artes plásticas e ainda na reflexão teórica sobre a estética e a criação cultural. Foi também tradutor (traduziu Rei Lear de William Shakespeare, enquanto esteve preso).

Álvaro Cunhal terá usado muitos pseudónimos ou heterónimos (há diferentes opiniões).O autor terá dito em entrevista que "Tiago não é um pseudónimo, nem um heterónimo. É Cunhal, ele mesmo, usando máscaras, porque gostava de máscaras". Na literatura foi Manuel Tiago. Como tradutor usou o nome de Maria Manuela Serpa e na vida política foi um homem com muitos nomes: Daniel (jovem revolucionário), Duarte (Dirigente clandestino), António Vale, António Sousa, Alenquer, Gabriel, entre outros. Aliás, é por causa disso que o autor mereceu o título de "homem sem nome".
Morreu em 2005.

A vida de Álvaro Cunhal entrelaçada na sua ficção.

Álvaro Cunhal enquanto esteve preso, entre 1949 e 1960, escreveu o romance "Até Amanhã, Camaradas" e "Cinco Dias, Cinco Noites" e produz um número significativo dos seus desenhos e pinturas.

O autor escreveu 9 livros de ficção, sete dos quais publicados entre 1994 e 2003 - "A Estrela de Seis Pontas", "A Casa Eulália", "Fronteiras", "O Risco na Areia", "Sala 3 e outros contos", "Os Corrécios"e outros contos" e "Lutas e Vidas - um conto". A sua obra é constituída por ricas narrativas de ficção literária.

Pacheco Pereira, no primeiro volume de "Álvaro Cunhal: Uma Biografia Política" escreve que a verdadeira autobiografia de Álvaro Cunhal está nos romances, ficcionados pelo próprio, dando como exemplos, "Até Amanhã, Camaradas", com a construção do PCP na clandestinidade; "A Estrela de Seis Pontas", a experiência da prisão na Penitenciária de Lisboa; "A Casa Eulália", a experiência de Álvaro Cunhal em ESpanha, em 1936; "A Fronteira" que aborda as várias passagens das fronteiras em 1935, 1936 e 1948. No entanto, Álvaro Cunhal sempre recusou esta tese.

A história do romance "Até Amanhã, camaradas"

Supõe-se que começou a ser escrito quando Álvaro Cunhal estava preso na Penitenciária de Lisboa, no início da década de cinquenta do século XX.

Sabe-se que quando Álvaro Cunhal fugiu do Forte de Peniche, através de uma corda, pelas dezenas de metros de muralhas, Cunhal trazia consigo, escondidos num colete fabricado para o efeito, os manuscritos desta obra literária, que na altura se intitulava "A Mulher do Lenço Preto" e sabe-se também que na fuga acabou por se perder uma parte dos manuscritos que o autor mais tarde reconstituiu.

"Até Amanhã, Camaradas" só viria a ser publicado em 1975, com uma nota inicial em que dizia que o original tinha sido encontrado no meio de um arquivo com uma pequena folha apensa e agrafada, onde se lia num rabisco feito à pressa Manuel Tiago. Durante bastantes anos, não se soube que era Manuel Tiago. O que só viria a acontecer em 1994, quando Álvaro Cunhal assume a autoria das diversas obras assinadas com o pseudónimo de Menuel Tiago.

"Até Amanhã, Camaradas" testemunho de uma vida

Estamos perante um romance realista e único na literatuta portuguesa. É hoje, considerado um romance do neorrealismo, a par de outros romances de autores consagrados como Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, José Gomes Ferreira, entre outros.
Este é um romance extraordinariamente importante na literatura portuguesa porque retrata um Portugal trabalhador e explorado pelo regime opressor de Salazar e mostra igualmente a dignidade e a coragem de homens e mulheres que participaram ativamente na construção de um partido, na sua organização e na luta, nos campos e nas fábricas em busca de uma vida melhor.

Como é afirmado por Domingos Lobo, "Manuel Tiago surge como uma voz descomplexada, com uma escrita clara e despojada, de cariz vincadamente anti burguês, politicamente e partidariamente comprometida. Álvaro Cunhal quis mostrar ao mundo aquilo que ele e outros companheiros viveram".

Os personagens e os lugares

Através desta narrativa conhecemos muitos homens e mulheres pela mão do autor, que os carateriza com rigor, nos pormenores físicos e psicológicos. Eles diferenciam-se pelo que fazem dizem, pensam ou sentem. Estamos, por isso, perante um romance polifónico. Aliás, o autor mostra-nos as pessoas com as suas fragilidades, feitios, teimosias, visões diferentes, as suas traições, etc. As pessoas são como são e Álvaro Cunhal mostra o ser humano tal qual ele é.

Podemos afirmar que o autor não quis destruir a individualização das personagens e vemos com certeza observar isso quando estivermos a falar nos personagens deste romance que são muitos (Vaz, Ramos, Marques, Maria, Rosa, Manuel Rato, Isabel, Joana, José Sagarra, Afonso, Paulo, entre tantos outros que viviam na clandestinidade.

Para além destes personagens, observamos o narrador, que é a voz que parece não ter nome. Ele é denominado de "Amigo" que é o personagem que visita a casa dos Pereira, como local  de refúgio ou ponto de apoio. Ele representa o grande coletivo partidário.

Pese embora o número significativo de homens e mulheres, personagens deste romance, Manuel Gusmão considera este romance como um dos poucos romances portugueses de herói coletivo e também um dos poucos que tem uma narrativa fundamental, a vida, a ação e a luta do indivíduo que a configuram. Urbano Tavares Rodrigues considera o Partido a personagem principal desta epopeia de pequenos heróis.

Temos também uma personagem simbólica - a bicicleta - personagem central, símbolo de um tempo de resistência e de luta, mas também símbolo de pobreza, dado que era o veículo utilizado pelos mais pobres e que passa despercebido, cumprindo assim as duas tarefas.

Outra importante caraterística deste romance é a descrição dos lugares que´é feita com grande clareza e é bastnte visual. O leitor consegue seguir todos os passos dos personagens, num crescendo de ação. Assiste a toda a preparação do movimento social com vista à materialização da greve, nas marchas da fome e reivindicações junto das autoridades locais. Em resposta a estes protestos, surge a repressão, a prisão,a tortura e a morte.

O romance termina com uma mensagem de esperança, digamos assim, porque no final assistimos ao reerguer da Organização, pela mão de Paulo, um dos personagens, um homem que não desistiu da luta perante as dificuldades.

Termino, referindo que a escrita de Álvaro Cunhal, foi uma forma de liberdade, como mais tarde terá afirmado no seu livro "A Arte, o Artista e a Sociedade": Arte é  Liberdade.

Maria Rijo






1 comentário:

  1. Bela sessão. Num espaço magnífico e com um tema sempre atual a luta pela LIBERDADE. Nos dias de hoje que a liberdade está tão ameaçada é sempre urgente lembrar como é viver sem liberdade.
    Para que a memória não se apague.

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