sexta-feira, 26 de junho de 2015

"E quem sabe o que nos vai acontecer pela vida fora? Uma interrogação abriu espaço ao diálogo.

E quem é que sabe o que nos vai acontecer pela vida fora? P. 29 

Mais uma vez me foi lançado o desafio de apresentar uma obra para a comunidade de leitores, e é com todo o gosto que aqui estou para tecer a minha leitura, ao mesmo tempo que aguardo com surpresa os vossos contributos para a interpretação deste texto literário.
Confesso de antemão que tenho este livro como um bom companheiro. É por certo um dos livros que revisito, e continuo a entrar nesta viagem, - a convite do autor, com espanto e alimentando-me de poesia na aflição de Manuel.
Por grande coincidência ou não também BB replica esta liberdade de entender, amar, sentir prazer ou “desajeitar-se” numa leitura.
Aqui neste espaço de partilha, seguramente não existe obrigatoriedade de leitura, ou de agradar a todos, no entanto quem lê, escolhe, seleciona, transforma, forma-se, forma o seu gosto leitor. Habitua-se à necessidade de ler.
BB no prefácio à sétima edição afirma: “Um livro vale o que vale, e nenhum prefácio altera para o mal ou para o bem, o que lá está dentro. Convido-o, pois a viajar comigo pelas ruas de uma infância aflita”.
Este prefácio ultrapassa e tradição frequente, de comentários preparativos da leitura que ajudam a determinar à partida, o seu leitor ideal, encontrando neste pré texto uma análise sólida, consciente acerca da literatura, da escrita, uma reflexão pessoal, marcadamente política e opinativa sobre o poder e a cultura.
As ruas que se nos oferecem como destino localizam-se em Lisboa na Ajuda, bairro que viu nascer Manuel - e onde viveu até à morte da mãe cancerosa. Já adolescente e, num segundo momento - estende-se por vários bairros onde se multiplicam as experiências de aprendizagem, momentos de iniciação, e, de crescimento até uma idade adulta.
Percorremos com ele: A calçada da Ajuda, o seu tejo, o quartel da guarda republicana, o cemitério, a taberna, não chegámos ao jardim colonial, mas as promessas foram regulares.
Num segundo tempo calcorreamos: as ruinas do carmo, o castelo de S. Jorge, O rio tejo visto agora de alfama, a baixa, o cais do Sodré e seus idílios, ainda os Bairros de Arroios, Lumiar, Graça…. E o telhado de casa.
É no fragmento do “pica” do elevador que ficamos a saber que Manuel já não é criança!
Situamo-nos então em Lisboa cidade adormecida por alturas da II guerra mundial sabendo que “Antes da guerra o tempo era favorável à afabilidade”; “havia intimidade”.
A neutralidade de Portugal salazarista na Guerra é aparente e a tragédia humana é acompanhada por notícias de jornais e relatos na rádio. Como sabemos todos, foram enviados jornalistas à BBC para darem conta, de modo filtrado, como era necessário ao regime, do que se passava na europa. Uma guerra lá fora mas que divide famílias cá dentro e levanta questões a todos:
Pai - Rebentou a guerra, P. 18; * paginação das edições ASA
Pai - É a guerra! P. 19.
Avô – o mundo agora vai piorar P. 21
Pai – Está tudo perdido para nós P. 21.
Manuel pergunta ao primo – Vão matar? P. 36
Manuel – Pai, como é que vamos de guerra? P. 40
Manuel - O pai ultimamente tem estudado a guerra? P. 62
Manuel - E quem é que sabe o que nos vai acontecer pela vida fora? P. 29 
Uma dessas famílias é a de Manuel, nome adotado pela personagem e roubada ao seu primo Manel, que sendo mudo produz discursos, explica, imagina, alivia dores. É esta personagem que o orienta pelas ruas do bairro que o viu nascer, onde se instalou a família alargada, os pais (que não se amam), os avós maternos (separados em afetos), o tio que não suporta o pai nem o cunhado e a tia (figura de carater desanimado).
A neutralidade de que se fala tanto não admite que a Guerra tenha dividido famílias portuguesas em anglófilos e germanófilos, mas foi o que aconteceu e a História nem sempre o diz. Portugal pactuou com uma frágil situação financeira e equilibrou-se através da exportação de volfrâmio para a arte da guerra; também recebeu refugiados… muitas crianças (entregues a famílias de acolhimento).
Com a Guerra começa a guerra em casa; Vejamos: Nesta incursão o tio e a mãe defendem um lado (ordem, disciplina); o pai e o avô “Aliados” – defendem militantemente no outro espectro político. A guerra acaba por durar toda a narrativa: Assim como a outra guerra, a da sobrevivência de Manuel, que parece começar quando o avô “um cão velho entre flores”, morre. Esse avô que mais não era do que um dos “cães velhos dos campos, que quando estão à morte, procuram as terras onde há flores para morrerem mais à vontade.”
Esta morte acaba por ser o início da procura de Manuel pelas suas flores; indesejado pela família da mãe, que vê nele um estorvo, e por vezes uma memória penosa para o pai, ele vai passeando por Lisboa, na companhia do seu primo Mudo; Também pela mão da avó e do pai, ou ainda, mais tarde de João e do Mágico, habitantes e amigos do seu pequeno mundo que se vai expandindo e sem retorno, tornando-o precocemente adulto.
Da leitura desta obra retiro momentos que me tocaram particularmente por tão bem expressos nas palavras medidas e imagens poéticas visionadas: a descrição pelo avô da figura do genro: “O teu pai é um artista; o teu pai é um bom homem, chefe de uma família empobrecida e gosta de sonhar”; a ida à embaixada por parte dos dois para manterem na lapela o emblema dos aliados ingleses revelando uma “cumplicidade sem palavras”; a questão do que é ser homem; a questão de onde reside a dignidade e da morte que é vista sem tabus, tal como a doença e a pobreza. “Agora sabia que eramos muito pobres”.
Para a estrutura da narrativa socorri-me de Maria Alzira Seixo:
1 - A viagem prometida por BB é uma viagem narrada essencialmente na primeira pessoa em tons intimistas e com uma clara tomada de posição ao estilo do escritor, com ocasionais fugas para a terceira pessoa, que acontece mais para o final da obra.
2 - Não é uma viagem alegre, é, isso sim, toda ela feita de um “vazio” nas personagens - parecem por vezes figuras que se movem ao sabor do vento - O que não implica necessariamente que sejam vazias
3- Outra característica é a ausência de grandes descrições. Tudo o que é dado é-o em tons impressionistas, sem contornos firmes, uma mancha que nos dá a entender o essencial, deixando o restante para o leitor imaginar. Retira-se deste modo, algum peso à obra, mas também uma certa sensação de profundidade. A organização em fragmentos ajuda à estratégia narrativa.
4 - Ao nível da escrita verifica-se um notável domínio de pontuação, - regula o ritmo da narrativa fazendo o leitor acelerar ao ponto de perder o folego, alternando com outra postura a de forçar o leitor a pausas para meditar no que lê.
Eu e a obra
Eu nascida em Lisboa em 1967 – longe portanto deste tempo da narrativa, ainda reconheço quadros da minha infância e de jeitos de ser gente em Lisboa: a ida de elétrico para a escola preparatória Manuel da Maia (com 10 anos) sendo o bilhete comprado à unidade e picado pelo “pica”.
Recordo as figuras do amolador de facas e de conserto de guarda chuvas (Estes ainda não extintos!), o padeiro à porta às 6 horas da manhã – transportado na sua bicicleta; as visitas de estudo já no Liceu Passos Manuel, ao Jardim botânico de Belém (reestruturado em plena Exposição do Mundo Português em 1940), e ao Palácio Nacional da Ajuda (erigido em final do século XVIII).
Ainda convivi com as lavadeiras de roupa com trouxas à cabeça, as costureiras que iam a casa recuperar e transformar as roupas de uns para outros, a ida à modista, as mercearias de bairro, a ida ao mercado da ribeira, os passeios a ver os Robertos no Parque Eduardo VII onde vendedoras de balões faziam pela sobrevivência; Também vendiam nougats. E dos bons! Os passeios à Alameda D. Afonso Henriques (1º rei de Portugal; conquistador de Lisboa aos mouros), Alameda essa, ex-libris do Estado Novo onde certo dia tirei uma foto à la minuta.
Mas BB trás para a sua narrativa muitas outras figuras: soldados, tropa, fiscal mor, chineses das gravatas, jornalistas e jornaleiros, ciganos, prostitutas, saltimbancos e vendedores, polícia, mestre-escola.
Estes fragmentos retenho-os em memória - mas foram abertos ao ler esta história e renasceram de novo para esta apresentação, memória essa e cito BB,” memória essa é que é efetivamente a ultima a morrer, e não a esperança”.
Para concluir e porque desde há muito que as palavras estão em festa, em liberdade, nesta comunidade de leitores de que fazemos parte, termino com este trecho que me emocionou por tão lúcido, onde as palavras dizem muito mais nos espaços de silêncio.
“Evocaria os anos de guerra e o que me sugeria: restrições, senhas de racionamento, bichas na madrugada para o pão e o carvão, troca de géneros, mercado negro, janelas com fitas gomadas, palavras misteriosas e belas: os Balcãs, os Sudetas, Varsóvia, Darnelos, mar de Mármara, Apeninos” p. 118

Com palavras …procurei responder à pergunta de uma personagem.
E quem é que sabe o que nos vai acontecer pela vida fora? P. 29 

Sabe a literatura!
Obrigada a todos.

Cristina Costa

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