quarta-feira, 20 de maio de 2015

Redescobrir: António Feliciano de Castilho



Dizia-vos eu, meus camponeses, que todos os poetas deveras eram vossos amigos; não há nada mais certo.
A Poesia nasceu nos campos, e por muito tempo só conheceu esse viver viçoso e perfumado. Veio a fazer-se dama ambiciosa de mais refinadas delícias; assentou vivenda nas cidades; fez-se muito sábia, muito altiva, muito malédica, muito contraditória; ora devota, ora ímpia, ora frívola, ora profunda; mas lá os seus campos nunca se lhes desluziram da lembrança.
Em nenhuma parte a ouvireis cantar combates, viagens, descobrimentos, artes, luxo, amores, ou desejos de melhor vida para além-mundo, que lhe não fugisse um olhar de saudade para o seu paraíso de flores.
A idade de oiro, que é a sua cisma contínua, posta umas vezes no passado, outras no futuro, a idade de oiro, (que Deus sabe se é tão fabulosa como cuidam, a não ser em relação ao seu título), que era ela se não a Arcádia, o viver campestre, manso e regalado?

Livros dos mais antigos do mundo, os de Moisés e os de Homero, uns e outros mananciais de Poesia, não têm página, que nos não espelhe uns reflexos das bem-aventuranças patriarcal e heroica, que são também Arcádia, com leves modificações.
Passaram os povos antigos, com as suas religiões e usos particulares. Nos escritos que de então sobreviveram, que é o que mais nos encanta? Não são por certo as descrições dos seus usos exclusivos, ainda que para aí se atrai fortemente a curiosidade; são, sim, os toques alusivos ao viver rural, porque enfim, aí é que é o ponto de contacto de todas as idades, e de todas as civilizações. O campo é que é o centro de unidade da espécie humana.
(…)

(Terceiro serão do casal – Índole campestre da Poesia, Felicidade pela Agricultura, 1849)

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António Feliciano de Castilho nasceu em Lisboa no dia 28 de Janeiro de 1800 e faleceu na mesma cidade no dia 18 de Junho de 1875. Aos seis anos, por motivo do sarampo, cegou. Não obstante isso, seguiu estudos regulares, graças ao auxílio de seu irmão Augusto Frederico. Em 1817, matriculou-se na Universidade e em 1826 formou-se em Cânones. A seguir, fixou-se com o irmão em Castanheira do Vouga, perto de Águeda, e aí se conservou uns oito anos, em situação que muito favoreceu o estudo e a produção literária. Esteve na Madeira e nos Açores e visitou o Brasil. Dedicou-se à tradução de obras em latim, francês e inglês. É um dos principais autores do Romantismo em Portugal.




Obras: Cartas de Eco e Narciso (1821); A Primavera (1822); Amor e Melancolia (1828); A Noite do Castelo (1836); Os Ciúmes do Bardo (1836); Crónica Certa e muito Verdadeira de Maria da Fonte (1846); Felicidade pela Agricultura (1849); Escavações Poéticas (1844); O Presbitério da Montanha (1844); Quadros da História de Portugal (1838); O Outono (1863).
Traduções: A Lírica de AnacreonteMetamorfoses e Amores, de Ovídio; Geórgicas, de Virgílio; Médico à ForçaTartufoO AvarentoDoente de CismaSabichonas e Misantropo, de Molière; O Sonho de uma Noite de S. João, de Shakespeare; Fausto, de Goethe; D. Quixote de La Mancha, de Cervantes.



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1 comentário:

  1. É sempre bom recordar os escritores portugueses, mas por acaso, relembro sempre Feliciano Castilho ligando-o à Geração de 70 e aos conflitos entre Antero de Quental e ele. Como simpatizo bastante com a causa da Geração de 70, lá fica o Feliciano prejudicado.
    Partilho aqui duas páginas de uma carta de Antero Quental a Feliciano Castilho muito interessante.


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