«Caminharam assim
durante um mês, com muitos trabalhos, com fomes, com sedes horríveis, porque
não tiveram que comer por todo este tempo senão aquele arroz que do galeão
escapara e umas poucas frutas que no mato acharam. Haveriam andado uma centena
de léguas (que fariam umas trinta, não mais, ao longo da costa), e tinham já
perdido umas dez pessoas, que se deitaram no chão por não poderem mais. Um
filho bastardo de Manuel de Sousa, de dez ou doze anos, vinha muito fraco por
causa
da fome; um escravo o trazia com muito custo, e ambos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa não deu por isso, por supor que vinha na retaguarda com seu tio Pantaleão de Sá. Perguntando por ele, e não o encontrando, ficou como louco. Prometeu que daria quinhentos cruzados a quem voltasse atrás em busca do filho: não houve porém quem lhos aceitasse, por se acharem já à boquinha da noite, em que os que se deixavam atrasar os devoravam os tigres e os leões.»
da fome; um escravo o trazia com muito custo, e ambos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa não deu por isso, por supor que vinha na retaguarda com seu tio Pantaleão de Sá. Perguntando por ele, e não o encontrando, ficou como louco. Prometeu que daria quinhentos cruzados a quem voltasse atrás em busca do filho: não houve porém quem lhos aceitasse, por se acharem já à boquinha da noite, em que os que se deixavam atrasar os devoravam os tigres e os leões.»
(Excerto do relato “Naufrágio
de Sepúlveda”)
* * *
Chama-se
“História Trágico-Marítima” à «colecção de relações e
notícias de naufragios, e successos infelizes, acontecidos aos
navegadores portuguezes», reunida por Bernardo Gomes de Brito, e
publicada em dois tomos em 1735 e 1736. Relatava 12 eventos marítimos
trágicos ocorridos entre 1552 e 1602 na rota da Índia. Outros três
tomos estariam previstos, mas não saíram. Mais tarde, foram
compiladas outras seis relações com a mesma tipologia. Algumas das
relações, sobretudo as doze originais, foram sendo reimpressas ao
logo do tempo, sofrendo geralmente atualizações ortográficas, mas
também depuramentos de estrutura.
Calcula-se
que, na segunda metade do século XVI, uma em cada quatro naus
enviadas à Índia naufragou. As causas prendiam-se com o frenesim de
ganância que atravessava a sociedade portuguesa. No final do século,
cerca de «1/4 da população (360.000) andava embarcada ou estava
diretamente envolvida nos negócios da navegação». Uma só viagem
podia enriquecer qualquer dos membros da expedição. A própria
configuração dos navios e a sua qualidade náutica alteraram-se,
traduzindo a pressão económica sobre as técnicas de construção:
«O bojo das naus alargou, cresceu a altura; era preciso que a
capacidade aumentasse.» A carreira da Índia transformou-se num
sorvedouro de vidas e fazendas.
Se
o naufrágio ocorria longe da costa, o mar “comera a nau” e dela
nada mais se sabia. Foi a maior parte dos casos. Mas se algum grupo
de náufragos lograva salvar-se, o relato do sucedido, quase sempre
pela mão pouco letrada de um sobrevivente, era impresso em folhetos
avulsos, criando um subgénero literário característico, raras
vezes cuidado no estilo, mas sempre intenso de realismo. Aí se
apontavam as causas dos naufrágios: «a largada fora da época
regulada pelas normas; as excessivas dimensões e a má construção
dos navios, utilizando madeiras inadequadas e calafetagem
insuficiente; o exagero das cargas e a sua má distribuição; as
tempestades, a deficiência das bombas de água, a carência de velas
sobressalentes; a inexperiência, a ignorância e a incapacidade dos
pilotos; os ataques de inimigos.» Aí «se encontram os mais
extraordinários relatos das horas dramáticas do naufrágio e da
dolorosa peregrinação dos escapados à morte, percorrendo léguas e
léguas através de terras» desconhecidas e inóspitas, «tragados
pelas feras, padecendo fomes e sedes, traições e ataques dos
indígenas, roubados, escarnecidos, maltratados e sujeitos a mil
vexames.»
Então,
«quando o ser humano tomba no abismo da desgraça e da miséria,
despojado de todos os seus bens e inexoravelmente posto frente a
frente com a morte, ele mostra», em plena transparência de alma: «o
orgulho, a arrogância, a cupidez, o egoísmo», a mesquinhez, a
barbaridade. Mas também o altruísmo e a renúncia, caldeando com o
heroísmo a brutalidade frequente.
A
descrição direta, quase jornalística, dos eventos funestos,
carregada de realidade, exala uma força dramática que a ficção,
tantas vezes salpicada de artificialismos literários, tem
dificuldade em atingir. Estes relatos inclementes constituem o
reverso sinistro/sórdido da «visão épica/heroica do comércio, da
conquista e da navegação perpetuados nas “Décadas” e nos
“Lusíadas” e pode ser considerada como uma antiepopeia dos
Descobrimentos», contribuindo talvez para o sentir nostálgico e
fatalista da alma lusa, sensível no Fado, e «que fez dizer a
Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas
de Portugal!”»
Joaquim
Bispo
Sites
consultados:
–
http://purl.pt/191
–
http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/f04.html
–
http://www.esas.pt/jaca/docs/HTM.pdf
–
http://www.bocc.ubi.pt/pag/madeira-angelica-historia-tragico-maritima.pdf
–
www.vidaslusofonas.pt/manuel_sepulveda.htm
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