sexta-feira, 6 de março de 2015

História Trágico-Marítima


 «Caminharam assim durante um mês, com muitos trabalhos, com fomes, com sedes horríveis, porque não tiveram que comer por todo este tempo senão aquele arroz que do galeão escapara e umas poucas frutas que no mato acharam. Haveriam andado uma centena de léguas (que fariam umas trinta, não mais, ao longo da costa), e tinham já perdido umas dez pessoas, que se deitaram no chão por não poderem mais. Um filho bastardo de Manuel de Sousa, de dez ou doze anos, vinha muito fraco por causa
da fome; um escravo o trazia com muito custo, e ambos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa não deu por isso, por supor que vinha na retaguarda com seu tio Pantaleão de Sá. Perguntando por ele, e não o encon­trando, ficou como louco. Prometeu que daria quinhentos cruzados a quem voltasse atrás em busca do filho: não houve porém quem lhos aceitasse, por se acharem já à boquinha da noite, em que os que se deixavam atrasar os devoravam os tigres e os leões.»

(Excerto do relato “Naufrágio de Sepúlveda”)

* * *

Chama-se “História Trágico-Marítima” à «colecção de relações e notícias de naufragios, e successos infelizes, acontecidos aos navegadores portuguezes», reunida por Bernardo Gomes de Brito, e publicada em dois tomos em 1735 e 1736. Relatava 12 eventos marítimos trágicos ocorridos entre 1552 e 1602 na rota da Índia. Outros três tomos estariam previstos, mas não saíram. Mais tarde, foram compiladas outras seis relações com a mesma tipologia. Algumas das relações, sobretudo as doze originais, foram sendo reimpressas ao logo do tempo, sofrendo geralmente atualizações ortográficas, mas também depuramentos de estrutura.
Calcula-se que, na segunda metade do século XVI, uma em cada quatro naus enviadas à Índia naufragou. As causas prendiam-se com o frenesim de ganância que atravessava a sociedade portuguesa. No final do século, cerca de «1/4 da população (360.000) andava embarcada ou estava diretamente envolvida nos negócios da navegação». Uma só viagem podia enriquecer qualquer dos membros da expedição. A própria configuração dos navios e a sua qualidade náutica alteraram-se, traduzindo a pressão económica sobre as técnicas de construção: «O bojo das naus alargou, cresceu a altura; era preciso que a capacidade aumentasse.» A carreira da Índia transformou-se num sorvedouro de vidas e fazendas.
Se o naufrágio ocorria longe da costa, o mar “comera a nau” e dela nada mais se sabia. Foi a maior parte dos casos. Mas se algum grupo de náufragos lograva salvar-se, o relato do sucedido, quase sempre pela mão pouco letrada de um sobrevivente, era impresso em folhetos avulsos, criando um subgénero literário característico, raras vezes cuidado no estilo, mas sempre intenso de realismo. Aí se apontavam as causas dos naufrágios: «a largada fora da época regulada pelas normas; as excessivas dimensões e a má construção dos navios, utilizando madeiras inadequadas e calafetagem insuficiente; o exagero das cargas e a sua má distribuição; as tempestades, a deficiência das bombas de água, a carência de velas sobressalentes; a inexperiência, a ignorância e a incapacidade dos pilotos; os ataques de inimigos.» Aí «se encontram os mais extraordinários relatos das horas dramáticas do naufrágio e da dolorosa peregrinação dos escapados à morte, percorrendo léguas e léguas através de terras» desconhecidas e inóspitas, «tragados pelas feras, padecendo fomes e sedes, traições e ataques dos indígenas, roubados, escarnecidos, maltratados e sujeitos a mil vexames.»
Então, «quando o ser humano tomba no abismo da desgraça e da miséria, despojado de todos os seus bens e inexoravelmente posto frente a frente com a morte, ele mostra», em plena transparência de alma: «o orgulho, a arrogância, a cupidez, o egoísmo», a mesquinhez, a barbaridade. Mas também o altruísmo e a renúncia, caldeando com o heroísmo a brutalidade frequente.
A descrição direta, quase jornalística, dos eventos funestos, carregada de realidade, exala uma força dramática que a ficção, tantas vezes salpicada de artificialismos literários, tem dificuldade em atingir. Estes relatos inclementes constituem o reverso sinistro/sórdido da «visão épica/heroica do comércio, da conquista e da navegação perpetuados nas “Décadas” e nos “Lusíadas” e pode ser considerada como uma antiepopeia dos Descobrimentos», contribuindo talvez para o sentir nostálgico e fatalista da alma lusa, sensível no Fado, e «que fez dizer a Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”»
Joaquim Bispo
Sites consultados:
http://purl.pt/191
http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/f04.html
http://www.esas.pt/jaca/docs/HTM.pdf
http://www.bocc.ubi.pt/pag/madeira-angelica-historia-tragico-maritima.pdf
www.vidaslusofonas.pt/manuel_sepulveda.htm



Sem comentários:

Enviar um comentário