quarta-feira, 9 de julho de 2014

Texto do escritor Afonso Cruz

Hoje faço anos, quarenta e três, e este encontro é um belo presente de aniversário. Estou a escrever este texto, enquanto o senhor Sacoto, sentado num tractor enorme, apanha o feno que plantou há uns meses. A paisagem que vejo da janela é a mesma que serve de cenário ao livro Jesus Cristo Bebia Cerveja. As mesmas oliveiras, azinheiras, ovelhas, beldroegas, figueiras, sobreiros. Mas também algumas das histórias: aqui, na aldeia mais próxima da minha casa, há uma pessoa que vai aos correios diversas vezes por dia, quer saber se recebeu alguma carta, a senhora diz-lhe que não, ele sai, anda uns metros, pára, já não se lembra de ter entrado nos correios uns minutos antes, volta para trás, quer saber se recebeu alguma carta. E, quando aqui cheguei, um ou dois meses depois de me ter mudado, morreu a avó de um dos colegas da creche onde o meu filho andava: matou-se, atirando-se para dentro de um poço. Fê-lo à frente do neto e do filho. O monte isolado na paisagem é também a imagem de muitas das almas isoladas na sua paisagem social e afectiva. Mas Jesus Cristo Bebia Cerveja é, sobretudo, um livro sobre metamorfoses. Como disse Camões, transforma-se o amador na cousa amada, e é precisamente essa ideia que, para mim, define a nossa transcendência, a possibilidade de um homem poder ser Deus, de uma aldeia alentejana poder ser Jerusalém, de um cereal maltado se transformar em cerveja. Tornamo-nos aquilo que desejamos, que perseguimos, que amamos, que adoramos. Sagrado significa literalmente "colocar à parte", e é a maneira que nós temos de tirar uma pessoa do meio da multidão anónima, pondo-a num lugar especial. É assim que o sagrado passa a ser qualquer objecto da nossa adoração: um seixo que tiramos do fundo de um rio onde passámos uma tarde especial, uma concha que apanhámos numa praia distante, o relógio do avô (que já fora do pai dele, do avô dele, do bisavô dele). E, claro, as pessoas: amigos, familiares, amantes, santos, cantores pop. Jesus Cristo Bebia Cerveja trata desta magia, da possibilidade de uma coisa pequena poder ter, graças à nossa adoração, amor, desejo, admiração, a dimensão de uma cidade sagrada. Os livros também têm essa possibilidade, podem crescer, podem chegar a ter o tamanho dos seus leitores.
Hoje faço anos. Gostaria de fazer um brinde convosco. Com cerveja, claro.
Muito obrigado! 

Afonso Cruz



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