Hoje faço anos, quarenta e três, e este encontro é um belo
presente de aniversário. Estou a escrever este texto, enquanto o senhor Sacoto,
sentado num tractor enorme, apanha o feno que plantou há uns meses. A paisagem
que vejo da janela é a mesma que serve de cenário ao livro Jesus Cristo Bebia
Cerveja. As mesmas oliveiras, azinheiras, ovelhas, beldroegas, figueiras,
sobreiros. Mas também algumas das histórias: aqui, na aldeia mais próxima da
minha casa, há uma pessoa que vai aos correios diversas vezes por dia, quer
saber se recebeu alguma carta, a senhora diz-lhe que não, ele sai, anda uns
metros, pára, já não se lembra de ter entrado nos correios uns minutos antes,
volta para trás, quer saber se recebeu alguma carta. E, quando aqui cheguei, um
ou dois meses depois de me ter mudado, morreu a avó de um dos colegas da creche
onde o meu filho andava: matou-se, atirando-se para dentro de um poço. Fê-lo à
frente do neto e do filho. O monte isolado na paisagem é também a imagem de
muitas das almas isoladas na sua paisagem social e afectiva. Mas Jesus Cristo
Bebia Cerveja é, sobretudo, um livro sobre metamorfoses. Como disse Camões,
transforma-se o amador na cousa amada, e é precisamente essa ideia que, para
mim, define a nossa transcendência, a possibilidade de um homem poder ser Deus,
de uma aldeia alentejana poder ser Jerusalém, de um cereal maltado se
transformar em cerveja. Tornamo-nos aquilo que desejamos, que perseguimos, que
amamos, que adoramos. Sagrado significa literalmente "colocar à
parte", e é a maneira que nós temos de tirar uma pessoa do meio da
multidão anónima, pondo-a num lugar especial. É assim que o sagrado passa a ser
qualquer objecto da nossa adoração: um seixo que tiramos do fundo de um rio
onde passámos uma tarde especial, uma concha que apanhámos numa praia distante,
o relógio do avô (que já fora do pai dele, do avô dele, do bisavô dele). E,
claro, as pessoas: amigos, familiares, amantes, santos, cantores pop. Jesus
Cristo Bebia Cerveja trata desta magia, da possibilidade de uma coisa pequena
poder ter, graças à nossa adoração, amor, desejo, admiração, a dimensão de uma
cidade sagrada. Os livros também têm essa possibilidade, podem crescer, podem chegar
a ter o tamanho dos seus leitores.
Hoje faço anos. Gostaria de fazer um brinde convosco. Com
cerveja, claro.
Muito obrigado!
Afonso Cruz
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